Gloomhaven – quando o digital aproveita o melhor do analógico

As adaptações digitais de jogos de tabuleiro multiplicam-se no Steam.  Gloomhaven, ainda a percorrer o seu percurso de desenvolvimento, em modo Acesso Antecipado, é já um dos melhor recebidos pela comunidade.  Porquê o sucesso?

Quando o jogo original é considerado como um dos melhores jogos de tabuleiro de sempre, quando as mecânicas que o movem parecem híbridas entre os videojogos e os jogos analógicos e quando a adaptação ao formato digital está bem feita, é fácil perceber as tão boas críticas.

Como esta rúbrica é dedicada ao jogo analógico, vamos então debruçar-nos sobre o jogo de tabuleiro original. Parece-me aliás essencial que o façamos, mesmo que se o artigo fosse sobre a versão digital, pois são as mecânicas por trás de Gloomhaven que fazem dele o jogo que é.

Gloomhaven é um Dungeon Crawler de fantasia desenhado por Isaac Childres e publicado pela Cephalofair Games, para 1 a 4 jogadores. É possível jogar cenários individuais, mas o jogo brilha é no seu modo campanha, oferecendo mais de 100 horas de gameplay, distribuídas por 95 possíveis cenários, e amarradas por uma história interessante, bem como um mundo de aventuras paralelas.

Toda a campanha pode ser acompanhada num mapa detalhado do mundo de jogo, que, com o passar do tempo e das missões, irá desbloquear novas localizações e conquistas, na forma de autocolantes que o jogador colará no local indicado. Cumprir certas condições, desbloqueará conteúdo adicional, como personagens jogáveis adicionais ou a abertura de envelopes selados que irão impactar o jogo. É um mundo dinâmico, reagindo às acções dos jogadores, como se um videojogo na linha de Witcher 3 se tratasse. Escolhas feitas, em determinado momento, irão ter consequências mais tarde e isso irá proporcionar momentos memoráveis. O mundo muda conforme jogamos e os componentes físicos do jogo também.

Cada jogador escolhe um personagem, de um lote de 6 disponíveis inicialmente, e uma história/missão secreta que irá dar-lhe uma agenda pessoal durante o jogo. Este é um dos pontos que gosto muito em Gloomhaven: ser um jogo cooperativo, mas em que cada jogador tem as suas motivações pessoais, por vezes até entrando em colisão com os interesses do grupo. Quando um jogador cumprir o objectivo pessoal do seu personagem, deverá retirá-lo. O que o move a aventurar-se está resolvido e chegou a hora de arrumar as armas e usufruir dos ganhos. É um momento repleto de emoções. Por um lado, não queremos deixar de jogar com um aventureiro a que nos habituámos, que evoluiu nas nossas mãos e está agora bastante poderoso. Por outro, é entusiasmante poder abrir o envelope de um novo personagem, com um estilo e histórias totalmente diferentes e fazê-lo entrar no mundo de Gloomhaven, com tanto ainda por explorar. De referir que, ao retirar um personagem, estaremos também a desbloquear novo conteúdo para o jogo e há também esse estímulo de descoberta.

Uma das primeiras coisas que o jogador irá reparar é que não há dados em Gloomhaven. Cada jogador tem um baralho de cartas de habilidades e um baralho de cartas de modificadores de combate.

As cartas de habilidades estão divididas em 2 metades, cada elas com uma acção diferente, sendo geralmente a acção de cima algo relacionado com ataque e a de baixo com movimento. Estas cartas têm ainda um valor de iniciativa associado, que irá ser usado para definir a ordem em que cada aliado ou inimigo irá agir no turno. Em cada turno, os jogadores escolhem duas cartas da sua mão para jogar, podendo depois, na sua ordem de iniciativa, resolver a acção de cima de uma das cartas e a acção de baixo da outra.

Algumas acções são consideravelmente mais poderosas, mas implicam remover a carta do jogo, não a podendo voltar a recuperar até ao final da missão. Isto é bastante relevante, pois o nosso baralho de habilidades não serve apenas para realizarmos as nossas acções, mas é também um cronómetro representativo da nossa stamina.

Esta mecânica é das melhores que o jogo nos apresenta e uma das mecânicas mais brilhantes que já alguma vez vi num jogo de tabuleiro: cada jogador constrói o seu baralho de cartas para a missão, podendo usar um número fixo de cartas definido pelo valor de resistência do personagem; cada carta utilizada é movida para uma pilha de descarte; quando o jogador ficar sem cartas na mão ou quando o decidir fazer, pode fazer uma acção de descanso para recuperar as cartas da pilha de descarte, sendo que, para o fazer, deverá remover definitivamente uma dessas cartas; quando um jogador não puder jogar 2 cartas no início do turno e não tiver mais cartas para recuperar da pilha de descarte, o seu personagem fica exausto e é removido da missão.

Sabendo isto, jogar aquela habilidade super poderosa, mas que faz remover a carta de jogo, já não parece assim tão boa ideia. Esta gestão do baralho é um dos pontos em que os jogadores se vão focar durante mais tempo e está brilhante.

As cartas de modificadores de combate servem não só para aumentar ou diminuir o dano causado pelos ataques, mas também para produzir uma série de efeitos, seja embeber o campo de batalha algum elemento mágico ou reforçar o ataque com alguma condição, como veneno ou desarmar o adversário.

O combate é tenso e divertido e o sistema de automatização dos inimigos funciona muito bem: cada tipologia de inimigo tem um baralho de cartas de acção específico, do qual se compra uma carta todos os turnos, ditando a sua iniciativa e comportamento. Desenhar um sistema de inteligência artificial em jogos de tabuleiros é bastante complicado, mas Isaac Childres fez um trabalho competente em Gloomhaven. As acções tomadas pelos inimigos são maioritariamente pertinentes, sendo muito raros aqueles momentos em que os nossos inimigos fazem algo que classificaríamos como estúpido. Na maioria das vezes, pelo contrário, os inimigos tomam acções imprevisíveis e que acabam por punir os aventureiros menos cuidadosos. É um sistema que, com o tempo, se torna invisível e isso é tudo o que poderíamos desejar.

Concluindo o cenário, o grupo de aventureiros colhe as recompensas de experiência e dinheiro acumulados, independentemente do sucesso da missão, sendo que, se o objectivo foi cumprido, poderá ler também a secção respectiva e colher recompensas adicionais e podendo avançar mais na história e desbloquear novas localizações. Entre missões, os aventureiros podem sempre viajar até à cidade de Gloomhaven onde podem comprar equipamento, ter encontros surpresa e subir nível. Ao subir de nível, progredimos o personagem aumentando os seus pontos de vida e melhorando o seu baralho de habilidades e de modificadores de combate.

Gloomhaven é um jogo enorme. Não é apenas uma caixa grande. Ela vem, de facto, muito bem preenchida com toneladas de conteúdo. Os componentes estão bastante bons e a arte do jogo excelente.

Jogar Gloomhaven é um pouco como estar constantemente no dia de Natal, abrindo novos conteúdos e descobrindo novas coisas a cada sessão. Como todos os jogos legacy, estamos a comprar um jogo para jogar a campanha uma vez apenas. Contudo, pela quantidade de horas de jogo oferecidas, não consigo ver esse facto como detrimento para gastarmos o nosso dinheiro.

Posso ainda acrescentar que a jogabilidade de Gloomhaven é tão interessante que eu teria vontade de voltar a jogar a campanha, mesmo já conhecendo a história. Isto porque o sumo do jogo reside no combate táctico de cada missão e esse não se perde para spoilers na narrativa. Mas como jogar novamente, marcámos o tabuleiro e as cartas com autocolantes? É possível adquirir um kit de autocolantes removíveis aparte, que permitem recomeçar a campanha.

 Gloomhaven é o mais próximo de um roleplaying game de papel e caneta, em versão jogo de tabuleiro, que iremos encontrar. É um misto de Witcher 3 com Divinity the Original Sin e Baldur’s Gate, em forma analógica. E por isso tudo, é, também, um excelente jogo, no seu formato digital.