As memórias saudosistas de um jogador que via (e vê) os videojogos como arte.
(este artigo está escrito em Português do Brasil)
Um longo tempo atrás, numa mesma galáxia e não numa muito muito distante, televisor era um artigo de muito luxo. Havia um único na casa e normalmente era um pequeno, sem graça e sem cores senão o mais puro preto, branco e tons de cinza, suficiente para trazer notícias ao pai, novelas e entretenimento à mãe, alguns desenhos e personagens infantis para os pequenos.
TV era um artigo raro para dias de chuva, quando os amigos estavam ausentes ou quando se estava doente. E pouco, afinal “televisão faz mal para as vistas” dizia as sábias mães.
Pouco tempo depois, no final dos anos 70 e início dos anos 90, uma revolução aconteceu e caixas mágicas passaram a poder ser acopladas e trazer vida às TVs, que aliás evoluíram e já apresentavam algum colorido e telas maiores, de estupendas 20 polegadas.
Uma caixa mágica permitia gravar os programas para assistir novamente ou quando não se estivesse em casa, ficando para sempre “impressos” na cinta magnética de um curioso quadrado preto. Penso que essas máquinas se alimentavam desses quadrados pretos, que eram colocados por uma boca e muitas vezes eram devolvidos mastigados, com a cinta magnética rota.
Outras caixas, cheias de fios, exigiam o talento de um eletricista para a correcta instalação, mas permitiam ao usuário interagir com a imagem exposta. Está vendo aquele quadrado? É uma nave. Esse ponto de exclamação que sai dele é um laser, tens de acertar naquele outro quadrado que é o seu inimigo. Cuidado com os Zordianos que te atacam, sáo esses triangulos menores.
“Mas o que fiz eu de mal ao quadrado e aos triângulos para quererem dar cabo de mim?” pensava o player atônito enquanto mal conseguia piscar com tanta coisa acontecendo naquela tela, ao mesmo tempo, ganhando pontos por conseguir sucesso e perdendo pontos quando corria mal. Morrer era perder a vida no jogo, tira uma unidade daquele marcador ali, recomeça tuuuudo de novo.
A segunda mágica dessas caixas era poder tirar um cartucho ou fita do slot, colocar outro, para um novo universo se abrir na tela. Agora os quadrados eram uma bolota com a boca aberta, a galáxia era um labirinto e os inimigos viraram fantasmas querendo atacar a bolota com fome. Se trocasse novamente de cartucho abria-se uma pista de corridas com mudanças de tempo.
Essa pré-história das consolas, como diz minha filha quando vê que estou jogando numa dessas consolas clássicas, exigia do simples jogar muitos talentos:
- Imaginação para transformar o quadrado no cavaleiro, a seta numa espada flamenjante, a pilha de quadrados num castelo e aquele simbolo piscante num prêmio final;
- Lógica para conseguir vencer obstáculos impensáveis;
- Força de vontade para montar e desmontar aquele monte de fios e cabos sem interferir com o horário das notícias, com o horário da novela e sem deixar a sala desarrumada, ou levava um chapadão;
- Determinação para jogar horas a fio sem salvar o progresso nem de nenhuma maneira gravar seu score para provar que realmente conseguiu os 999.999 pontos (alguns tiravam fotos com máquina fotográfica, daquelas antigas como rolo de filme);
- Coragem para enfrentar todos seus medos, especialmente os das mães zangadas dizendo que “videogame estraga a televisão” e que “muita televisão faz mal para as vistas”.
- Educação poara aprender um básico de inglês e japonês se quisesse jogar alguma coisa de qualidade. Lembro bem de desenhar em papel a tela e os characters japoneses que o jogo mostrava, levar até a casa de um amigo meu para o pai dele traduzir e eu poder avançar no jogo.
As consolas evoluíram em suas chuvas de bits, marcados por gerações dos 8 aos 64bits, depois pelo seu poder de entretenimento, exclusivos e plataformas conectadas online. O grande salto para mim foi o das 16 bits para as 32 bits, digamos assim. Do Super Nintendo para o 3DO, bem didaticamente dizendo, quando saímos de pixels pintados para full motion video e gráficos poligonais renderizados em tempo real.
Pensem em algo como Star Fox vs. Total Eclipse, Road Rash da Mega Drive vs. Road Rash da 3DO ou da PS1. Eram outro universo e o jovem gamer não acreditava que o seu quadrado com seta de espada virou esse cavaleiro realmente grande com essa espada realmente flamejante. O mapa que era um desenho em 2D sobre um plano era agora multidimensional, bastava virar a tela que o mapa virava junto e novos desafios surgiam.
Essa revolução só se aprimorou e hoje os videojogos são verdadeiras obras de arte. Quem nunca se perdeu pelos mapas de Uncharted, ficou motivado pelo desejo de vingança do God of War, perdeu horas e horas acertando aquele detalhe na suspensão do carro em Gran Turismo ou Forza, fora jogos que são incrivelmente perturbadores e nos tiram da zona de conforto. Detroit Become Human, Last of Us, Brothers, Mass Effect, Dead Space, são tantos que isso pode ser tema de outra crônica.
Quero por fim dedicar esse texto ao miúdo ou miúda que teve a felicidade de, num certo dia longínquo do passado, ver seu pai ou sua mãe chegar com uma prenda, uma caixa grande, e essa prenda tenha lhe aberto um universo de cultura, entretenimento e despertado ainda mais sua curiosidade.
Aprendi em 1983 com o Atari 2600 o que era um videogame. Sou do tempo da internet discada, das cartas em máquina de escrever e de conversar pessoalmente! Do Telejogo Philco-Ford ao telemóvel mais recente, gosto de experimentar games indies e de ajudar a se tornarem títulos AAA. Colecciono consolas e videojogos que fizeram parte da minha história! Pai, Motard e Gamer. 😉