Tem sido frequente, nos últimos anos, assistir-se a valentes lições dadas pelos jogos indies aos jogos de maior orçamento (os chamados triple A ou AAA).
Nomes como What Remains of Edith Finch, Firewatch, Inside, Celeste, Hollow Knight, entre outros, são ótimos exemplos de jogos que, apesar de terem sido construídos por pequenos estúdios, deixaram a sua marca na indústria.
Fico contente por poder dizer que, Going Under foi um jogo que me surpreendeu pela positiva e que poderá muito bem integrar uma lista de melhores jogos indies de 2020. Mas comecemos pelo início.
Desenvolvido pela Aggro Crab e publicado pela Team 17, Going Under é um jogo do género dungeon crawler. Situado na cidade fictícia de seu nome Neo Cascadia, o jogo começa com um vídeo de apresentação da empresa Cubicle, uma companhia que começou de forma modesta como startup, mas que, devido ao seu sucesso, cresceu e adquiriu para si outras pequenas empresas, entre as quais a Fizzle Beverages, uma startup que se destacou por ter criado uma água que, para além de ser gaseificada, também pode ser utilizada como uma substituta das refeições. É aqui, na Fizzle, que a protagonista do jogo, chamada Jacqueline Fiasco (um nome bastante sugestivo), é colocada para iniciar o seu estágio em marketing.
No entanto, Jacqueline rapidamente se apercebe que a função à qual se candidatou não é bem aquela que irá exercer na prática. A aparição de um monstro oriundo de outra startup leva Marv, o chefe de Jacqueline, a incumbi-la da tarefa de eliminar essa criatura e impedir que outras mais cheguem ao estabelecimento da Fizzle. Para isso, Jacqueline terá de descer até à primeira dungeon do jogo – a fracassada startup Joblin.
No colorido mundo de Going Under, as empresas não se limitam a declarar insolvência e, mais tarde, enfrentar uma dissolução. Neste universo, o falhanço da empresa e dos seus trabalhadores implica que tanto esta como estes, sejam banidos para o submundo, permanecendo lá para toda a eternidade como monstros.
É na Joblin que o jogador terá o seu primeiro contacto com as mecânicas fundamentais da jogabilidade de Going Under. A primeira tentativa nesta dungeon servirá apenas para o jogador se ambientar aos controlos e aos cenários, pois por muito habilidoso que seja, não poderá sair vitorioso da masmorra logo à primeira.
No que ao gameplay diz respeito, não há nada de extremamente complexo a registar: existe um botão para atacar (ao manter-se premido executa-se um charge attack); um botão para fazer dodge roll, evitando ataques; um botão para fazer lock-on no inimigo mais próximo; botões para escolher qual das armas guardadas equipar; e, por fim, um botão para atirar o que quer que se tenha à mão naquele momento. Aqui, a escolha de palavras não é inocente.
A diversidade de objetos que podem ser utilizados como armas em Going Under é enorme. Existem objetos transversais a cada uma das três grandes dungeons do jogo, como por exemplo, laptops, lápis de carvão ou teclados e existem depois outros que são específicos de uma dungeon, e aqui refiro-me, por exemplo, a picaretas, almofadas ou tacos feitos de osso. A forma como Jacqueline usa cada objeto também difere consoante o que esteja equipado, o que significa que, não é a mesma coisa, por exemplo, atacar com um um laptop ou atacar com um teclado.
Serão inúmeras as vezes que será necessário trocar de armas, visto que, todas elas têm uma durabilidade limitada e irão partir-se após um certo número de ataques. Este é um fator que só abona a favor de Going Under, pois assim, o gameplay mantém-se variado e encoraja o jogador a experimentar as diversas armas ao dispor de Jacqueline.
Quanto às dungeons em si, todas elas têm em comum o facto de serem startups falhadas. Mas não só. As três principais dungeons de Going Under partilham entre si a mesma estrutura: cada uma é composta por quatro andares (Floors). Nos primeiros três andares, Jacqueline irá deparar-se com inimigos para derrotar, com lojas onde se podem comprar itens, com salas onde se poderá escolher uma de duas skills e até salas com um desafio opcional. O quarto (e último) andar é onde reside o Boss de cada dungeon, sendo que aqui a palavra “Boss” poderá ser interpretada em sentido literal, pois defronta-se o CEO das empresas desafortunadas.
No que toca às Skills que Jacqueline pode equipar, aqui também há um vasto leque de opções. Poder-se-á escolher, por hipótese, entre eletrocutar inimigos quando se é atingido ou ficar invencível por mais tempo após ser atacado. Isto confere uma certa complexidade a um sistema de combate que, apesar de simples na sua essência, irá castigar aqueles que adotem uma mentalidade que privilegie apenas o button-mashing.
As Skills escolhidas enquanto Jacqueline percorre cada dungeon não ficam com ela após sair da masmorra, quer em caso de derrota, quer em caso de vitória. No entanto, ao usar cada Skill, ganha-se experiência e com a experiência suficiente poder-se-á equipar uma dada Skill sem ser sequer necessário estar numa dungeon. Esta mecânica acaba por atenuar a frustração de perder contra o Boss (ou mesmo antes dele) numa dungeon, pois apesar da derrota e de ter de voltar a repetir o percurso pela masmorra, a sensação com que fiquei foi a de que nem tudo foi em vão.
Outra coisa a ter em conta também são as Apps. Elas serão encontradas em algumas salas das dungeons e conferem vários benefícios, como poder aumentar a durabilidade de uma arma, curar a Jacqueline ou criar uma distração para ser alvo dos ataques dos inimigos.
Após a sua visita a cada masmorra, Jacqueline regressa ao seu local de trabalho – a Fizzle. Aí, a estagiária terá a oportunidade de conhecer melhor os seus colegas e devo dizer que, em muitos dos diálogos que tive o gosto de ler, foi impossível não soltar umas pequenas gargalhadas. Going Under é um jogo que aposta bastante no humor sempre que as personagens interagem umas com as outras e, para além disso, também não se importa de lançar duras críticas ao capitalismo e aos seus excessos. A maneira como o faz, através de um humor satírico, é hilariante e genial.
Mas os colegas de trabalho não existem apenas para alguns momentos de comédia. Eles podem ter uma grande influência na jogabilidade. À exceção do já mencionado Marv, todos os colegas (e o CEO da Fizzle) de Jacqueline irão oferecer-lhe tarefas adicionais para serem realizadas nas masmorras. Estas tarefas baseiam-se em objetivos simples que, muitas das vezes, serão alcançados naturalmente, como por exemplo, eletrocutar cinco inimigos ou matar dez inimigos com um teclado. Após a realização de determinada tarefa, o/a colega de trabalho correspondente torna-se um Mentor de Jacqueline e, ao equipá-lo/a, ativa-se um Perk que poderá ser uma grande ajuda em futuras incursões por qualquer uma das dungeons.
Um dos Perks que desbloqueei consistia em poder comprar um item, mesmo quando não tivesse dinheiro para o fazer e, ao utilizar esse Perk, fui surpreendido com um excelente pormenor, porque para além de ter ficado com o dinheiro com valor negativo, foi ainda preso às pernas de Jacqueline um peso com a palavra Debt (dívida), o que dificultou bastante a mobilidade da estagiária durante os combates. Felizmente, após voltar a ficar com um valor de dinheiro positivo e, consequentemente, com a dívida saldada, a protagonista pôde voltar a mover-se livremente.
Quanto à dificuldade, apesar de não considerar Going Under um jogo muito difícil, é exigida cautela na forma como se joga. As oportunidades para curar Jacqueline não são muitas, por isso, há que saber os momentos certos para atacar os inimigos e ter cuidado com as ocasionais armadilhas que possam existir nos cenários das masmorras. No entanto, é de realçar que existe um Assist Mode que pode ser ajustado de acordo com as necessidades de cada jogador, fazendo lembrar as várias opções de acessibilidade presentes em Celeste.
No que toca à longevidade, Going Under não é um jogo longo. Demorei cerca de seis horas para vencer as três masmorras principais e os dois últimos níveis (que não apresentam a mesma estrutura das três dungeons anteriores). No entanto, existe muito mais para fazer para aqueles que gostam de completar e colecionar tudo: existem 5 Mentors, cada um com 4 Perks para desbloquear e dezenas de Skills para evoluir.
Conclusão:
Going Under é um ótimo jogo para fãs do género dungeon crawler. A sua jogabilidade apesar de simples, nunca se torna repetitiva, devido ao vasto leque de opções ao dispor do jogador. As suas várias personagens apresentam um charme muito particular e os diálogos que têm entre si, para além de hilariantes, largam imensas críticas ao capitalismo e aos seus excessos e também aos modelos de gestão empresarial dos dias de hoje.
Defensor da paz entre as consolas e não da guerra entre elas, começou com uns toques na Mega Drive, depois passou para a velhinha PS One e, seguidamente, para a eterna PS2, mas foi apenas com a PSP que a sua grande paixão pelos videojogos despertou, principalmente quando chorou que nem um bebé no final do Crisis Core Final Fantasy VII. Apesar de jogar (quase) de tudo um pouco, o seu coração bate um pouco mais rápido pelo género RPG, pois são jogos desse género que mais memórias lhe trazem.