“Ainda jogas com essa idade?!” – A incompreensível questão carregada de preconceito

Em muitos aspectos, o Mundo tem evoluído em termos de mentalidades, como a exigência de que mulheres e homens tenham os mesmos direitos, por exemplo. Mas nos videojogos ainda muito há a fazer…

Eu sou da colheita de 1988, começando o meu contacto com os videojogos na década de 90. Quando tive a sorte de receber de oferta uma Mega Drive era filho único à data, encarando com naturalidade aquilo que foi a minha experiência durante vários dos meus primeiros anos de jogador: ou jogava sozinho, ou jogava com amigos da escola ou da rua onde morava. Isto porque, quer para os pais dos meus amigos, quer para os meus, os videojogos eram mais um dos brinquedos que nos tinham comprado para nos entretermos.

Os anos foram passando, o meu interesse pelos videojogos mantém-se exactamente o mesmo. Posso já não fazer directas com um amigo a jogar PES (sim, aconteceu). Posso ter muito menos tempo disponível do que aquele que a única obrigação que existia (a escola) “roubava”. Posso ter muito mais apreço pelo descanso e preguiça no geral, não resistindo muitas vezes a não fazer, literalmente, nada ao invés de aproveitar esse tempo para inevitavelmente jogar uma hora que seja. Mas continua a ser o meu hobby preferido, continuo ligado nas notícias, nas novidades, passei a ser um consumidor directo (pois quem compra agora sou eu) e desfruto em certas alturas bem mais do que quando era criança e adolescente, quer por ser melhor jogador hoje, quer por perceber muito melhor a complexidade de certos enredos que uma criança nunca compreenderia na plenitude (estou a pensar nos jogos da Quantic Dream).

Só que se eu gosto do mesmo, a forma como sou olhado aos 32 anos alterou-se. É curioso que os desenhos animados, principalmente desde que a Pixar entrou em campo, foram diversificando tanto a sua oferta que deixaram de ser um chamariz só para miúdos, como passaram a ser assumidamente apreciados por graúdos, uns mascarando que de facto gostam de ver com a desculpa de que “é porque o filho vê”, mas muitos já não tendo problema em pagar até o seu bilhete e ir ao cinema assistir ao “Rei Leão” (versão “animais reais”), seja pela nostalgia do “Hakuna Matata“, seja por simples gosto naquelas duas horas de entretenimento.

Mas quando o assunto é videojogos, dou por mim a passar por uma de duas situações em que, se calhar, muitos se reveem: ou omito que jogo videojogos, ou enfrento um olhar constrangedor, quase piedoso. Claro que isto acontece quando assumo, numa conversa com pessoas com quem não tenha confiança, que tenho este hobby. Numa entrevista de emprego então… a omissão sinto que é mesmo a única alternativa à pergunta: “E o que gosta de fazer nos seus tempos livres?”.

Recordo-me com clareza das palavras proferidas há uns anos por uma colega de trabalho, colega essa mais velha e com filhos da minha idade na altura (24 anos): “Ah, isso um um dia passa-te, os meus filhos também eram assim…”. Sintam o tom, tal e qual da forma como me foi dito. Foi como se em vez de dizer que gosto de jogar videojogos tivesse dito qualquer coisa como ainda estar a utilizar chucha para dormir!

 

Faz sentido isto? Não vejo como. Não consigo sequer avançar com uma explicação, uma vez que olho para o calendário e, se não estiver enganado, encontro-me no ano de 2021 (na conversa que invoquei há pouco, já estava em 2014, não em 1994). E ao alargar a minha visão, saindo “do meu umbigo”, o que assisto é a queixumes de quem tem um marido que gasta dinheiro em jogos (não sendo condenável gastar em qualquer outra coisa, só a compra de jogos é criticada), à incompreensão para com quem troque uma hora do seu tempo livre para jogar em vez de ler um livro (mesmo se tenha lido um no dia anterior). Ou seja, constato um ostracismo disfarçado de um comportamento que quem não aprecia videojogos entende ser apenas aceitável até, vá, à puberdade: gostar de “videojogar”.

Para quem segue o canal do YouTube, “Food4Dogs“, sabe que não é mais do que um puro pré-conceito a ideia pré-concebida de que, a partir de certa idade, se deve deixar de ter interesse pelo gaming. Vou saltar a parte em que enumeraria jogos que não são sequer para serem jogados por crianças, seja pelo excesso de violência e linguagem ofensiva que são os motivos mais tradicionais, até ao facto de não serem pura e simplesmente perceptíveis a não ser a partir de uma certo nível de maturidade, optando por deixar que um ou dois vídeos desta terna “avó” desfaçam ideias que não têm lugar nos dias de hoje.

Ler, ver filmes, ver desenhos animados, ver séries, ir ao teatro, ir a concertos, praticar desporto, ouvir música, jogar videojogos. Tudo isto são passatempos. Tudo isto pode ser desfrutado por quem tenha 8 e 80 anos. Ninguém deve ter que se sentir alvo de chacota, ainda que não nos digam frontalmente, por preferir um meio de entretenimento que não é apreciado por outra pessoa. Não gostamos todos do mesmo. Não aceito é que haja uma hierarquia implícita de que todos os outros hobbies que não os videojogos é que são apropriados para quem tem 32 anos. Pode ser apreciado por quem é pai e mãe, avô e avó, sozinhos ou acompanhados. Os videojogos são para todos!