Que vantagens tem a arte pixel na construção de uma utopia em videojogos? Aqui, analisamos alguns aspetos da resposta a esta pergunta, como a jogabilidade e os gráficos.
Um dos grandes potenciais dos videojogos, como objeto cultural, é o de construir e dar novos mundos a quem deles usufrui. Para isso, usam uma imensidão de elementos, os quais se sujeitam a um determinado estilo artístico. Se olharmos para determinado objetivo da narrativa de um videojogo, como o de imaginar uma utopia, que vantagens tem a arte pixel na construção de uma utopia?
A primeira questão a levantar é se a utopia, nos videojogos, pode ser representada exclusivamente com recurso a arte pixel. Na minha ótica, e de uma perspetiva crítica, ao fazer esta questão olha-se de uma perspetiva dualista para a problemática. Por outras palavras, está-se a pensá-la em termos de sim ou não quando se deveria procurar uma resposta dentro de um espectro, em vez de numa oposição, do que decorre que a arte pixel é, para criar uma utopia, melhor ou pior do que o realismo gráfico dependendo da aplicação que o desenvolvedor lhe der. Todavia, a escolha – que muitas vezes não o é, sendo apenas contingência imposta por restrições financeiras – pelo estilo visual que aqui examinamos, parece trazer algumas vantagens na representação, nos videojogos, de um lugar ideal.
Arte Pixel vs Realismo
Os videojogos em arte pixel existem, de forma mais ou menos regular, por oposição ao realismo gráfico. Num primeiro reflexo, tal constatação pode parecer afirmar que quem seleciona desenhar os elementos do videojogo pixel a pixel tem que, forçosamente, desligar-se daquilo que é a nossa vivência, e que o jogo não pode ser, de forma alguma, realista. Pela minha parte, é difícil de crer que algum videojogo possa escapar inteiramente da realidade, podendo, todavia, aumentar ou reduzir a sua convenção com o mundo real.
Sinto-me tentado a dar um exemplo, em jeito de explicação para aquilo que estou a afirmar. Para selecionar um jogo com grau de compromisso médio com a verdade, parece-me bem trazer à conversa a série Final Fantasy. Considerando-o de uma forma geral, o universo do jogo distingue-se da nossa realidade desde o próprio título, que escreve ‘fantasia’. As figuras, centrais ou não, adornam-se de maneiras próprias, com roupas e penteados únicos, e utilizam, em aventuras que estão fora do alcance de quem não esteja disposto a sentar-se a olhar para um ecrã, armamento, no mínimo, exageradamente vistoso. À luz destas afirmações, muito pouca gente diria que se trata de um jogo realista.
Mas ainda que através destes elementos se constitua como um microcosmo próprio, forçosamente, tem que estar dotado de componentes baseados no mundo real, uma vez que tanto aquele que desenvolve o jogo e aquele que o joga têm em comum a experiência de um mesmo universo. Com efeito, estes intervenientes necessitam de se encontrar num ponto que lhes permita estar em pé de igualdade ou num em que o jogador se possa colocar em tal posição que consiga efetuar um ajuste entre aquilo que sabe e aquilo que o videojogo requer. Nesta lógica, assim como na ausência de gravidade seria impossível o ato de andar, também um videojogo que pretenda colocar personagens em locomoção terrestre necessita de imitar o fenómeno o suficiente para que o jogador compreenda que, naquele universo, há gravidade, e que pode cair de uma falésia.
Portanto, o compromisso com a realidade é, na prática, obrigatório, para salvar a experiência do jogador do caótico, o que não impede que o desenvolvedor tenha alguma liberdade para subverter esses mesmos aspetos, e é justamente por essas vias que os videojogos em arte pixel excedem aqueles que tentam imitar, nos seus gráficos, uma visão do mundo real. Na verdade, é assim por causa das premissas que o estilo implica.
A experiência do jogador
Parece-me que se podem hierarquizar em dois níveis a experiência corporal do jogador de videojogos. Num primeiro nível, o mais superficial, mas também o mais estimulante, há o aspeto do som e o da visão. No segundo patamar, encontra-se o movimento dos membros, como os braços ou os dedos das mãos. Em certas ocasiões, os membros inferiores estão também envolvidos, ou até o pescoço. Em suma: um nível para os estímulos recebidos, outro para a entrada de informação no videojogo.
Qualquer jogo, de computador ou não, é-o apenas por necessitar da resposta do jogador. Num jogo de Xadrez, só participa quem move as peças, e o aspeto visual é meramente orientativo, e o do som apenas acessório. Quer isto dizer que, em jogos de tabuleiro deste género, tenho que tomar partido para jogar, e é perfeitamente concebível que um indivíduo invisual, conhecendo as regras e o tabuleiro, consiga jogar. Menos dificuldades teremos para conceber um deficiente auditivo a jogar Xadrez.
Aliás, este último tem, no âmbito dos videojogos, maiores facilidades do que o cego, porque, ainda que com as suas particularidades, o impacto da falta de som no jogo é muito reduzido quando contraposto à falta de imagem. Na verdade, a música é de tal forma secundária que costuma ter como objetivo prático cobrir o vazio sonoro ou a monotonia relacionada com a interação entre o jogador e o ambiente jogável, do que se aproveitam, muito perspicazmente, os desenvolvedores para auxiliar na construção da identidade do jogo. Com efeito, e ainda que haja música em arte pixel – é todo um estilo artístico e não só visual –, o seu uso poderá auxiliar na construção de um mundo.
Num enredo, genérico, em que a personagem controlável tenha que percorrer um determinado percurso em época medieval para salvar o seu reino ou aquela princesa para ser feito herói, o papel da banda sonora, em 8-bit, com temas medievais, dar-lhe-ia um detalhe complementar, no sentido de alargar a sua atmosfera, com a vantagem acrescida de fazer o jogador ter maior envolvimento naquele ambiente.
Por outro lado, num jogo que alvejasse ser mais realista, a música teria que funcionar de forma diferente. Seria descabido simplificá-la e apresentá-la como estando em 8-bit. Mais: esse tipo de jogos tem a vantagem de dar ao jogador uma área de jogo mais abrangente, o que, se por um lado permite um maior grau de exploração daquele mundo, por outro necessitaria de acompanhamento da banda sonora para aqueles ambientes, o que tendencialmente é feito, por exemplo, utilizando sonâncias ventosas em ambientes exteriores naturais, ou sons graves e de difícil audição em ambientes cavernosos.
Será que este é também o caso para videojogos em arte pixel? Considerado estereotipicamente, o jogo em arte pixel é em 2D, vertical ou horizontal. Antes de a arte pixel existir em contrapartida a gráficos realistas, como é hoje, eram aqueles desenhos os gráficos realistas. Jogos do início da década de 90 em 2D são a inspiração para a arte pixel, não havendo, na época, os gráficos realistas, como lhes chamamos hoje. Só com aumento do poder de processamento de computadores é que passou a ser possível haver a distinção. E, por nostalgia ou conveniência, aquela que foi a primeira forma de representar a realidade manteve-se, e chegou a adaptar-se, havendo hoje jogos que empregam o estilo, ou algo que é produto deste, como é o caso do Minecraft, em que o pixel passa a ter três dimensões, e assume a forma de um bloco.
Os Gráficos
Vejamos de que modo o uso de pixel arte favorece a construção de uma utopia. Se os jogos em arte pixel são principalmente em 2D, os ambientes constroem-se de modo particularmente diferente da realidade tangível que os videojogos em 3D imaginam.
A melhor forma de pensar no assunto é colocando em contraste o modo em que cada uma destas perspetivas constrói uma casa simples de uma só divisão. Skyrim, que parece criar uma realidade medieval fantasiosa, ilustra bem como é que jogos desta espécie criam tal ambiente. Nesta, o jogador pode olhar em redor, e observar as paredes, olhando em diferentes direções, e em cada uma encontrará um diferente detalhe: uma lareira e uma chaminé na parede Norte, uma cama encostada à parede Sul, a Este um armário, e a Oeste a porta, e, no topo, o teto da casa, na direção oposta do solo de tábuas de madeira.
O mesmo não acontece no estereotípico jogo de arte pixel em 2D, em que há apenas um ângulo de visão. As quatro paredes resumem-se a um elemento colocado em primeiro plano sobre um fundo, ou sendo até o próprio fundo. Aqueles elementos estão dispersos horizontalmente ao longo do ecrã, havendo apenas distinção entre da esquerda e da direita, e primeiro e segundo plano. O que resulta daqui é que a maior parte daqueles ambientes é idêntica entre si, mudando apenas a decoração. Com efeito, não há razão para que a música entre níveis ou ambientes seja tão distinta como num videojogo em 3D, o que favorece a sua unidade. O mesmo acontece para jogos em 2D, mas em que o jogador tem uma perspetiva de topo do ambiente.
Assim se vê que os elementos visuais são os que determinam os outros aspetos do jogo, mais do que ao contrário, o que apenas vem a reforçar que o aspeto visual do videojogo é o que lhe é mais importante. Coincidentemente, a visualidade é também o aspeto central da arte pixel. É sobretudo pelos tons vibrantes que o estilo muitas vezes coloca que se destaca face às cores empregues em jogos com grande compromisso com a realidade, que tendem a não ser tão vivazes, ou são, até, propositadamente, atenuadas, aproximando-as de tons acinzentados.
Parece-me que a melhor forma de o explicar, é, novamente, pelo exemplo. Estou convencido de que um jogo que explora, em simultâneo, as vantagens dos videojogos sobre outros meios culturais e se aproveita das caraterísticas da arte pixel para criar uma utopia é o Stardew Valley. Sobre as cores, verifica-se que são fáceis de definir (Amarelo, Castanho e Verde são algumas), como também são apelativas. Por outras palavras, o doirado do solo, o chocolate das árvores e o verdejante das ervas são cores que se destacam por si pela sua luminosidade. O mesmo acontece ao adentrar no centro da aldeia, com os telhados e jardins, e até o próprio caminho, de um cinzento brilhante.
O mesmo não se pode dizer das cores de uma série que me parece, também, tentar construir uma utopia rural, mas com grande compromisso com a realidade: Farming Simulator. Aqui, tenta-se replicar o mundo real, e há que se comprometer com as cores deste: o asfalto pálido, os tons térreos da lama, e as cores secas das plantações prontas para colheita. E, aliás, é obrigatório seguir esta paleta, sob pena de se sujeitar a quebrar esse compromisso. Se tivesse as mesmas cores do Stardew Valley e sem as adaptações gráficas necessárias, o jogo acabaria com aspeto cartoonístico.
E neste momento é pertinente continuar a explorar as vantagens da arte pixel no que toca à sua cor olhando para um exemplo inverso ao de Stardew Valley. É responsabilidade do desenvolvedor selecionar a paleta de cores que deseja aplicar, bem como a sua saturação. E, se por um lado se pode aproveitar essa seleção para fazer a utopia, é obrigatório que se possam utilizar estes mesmos aspetos para construir aquilo que está no outro lado da moeda que tem a utopia: a distopia. Papers, Please fá-lo com mestria, ao selecionar um conjunto de cores monótonas, que evocam a sensaboria de uma vida de dificuldades orientada pela rotina laboral.
Aliás, este jogo serve também para demonstrar uma grande vantagem da escolha por usar arte pixel na construção de uma utopia em 2D: este jogo, em 3D, seria demasiado complicado para a experiência que pretende proporcionar. E, aliás, há ainda outro aspeto mais relevante a ressaltar daqui. Se, por acaso, a escolha fosse a de colocar o jogo numa perspetiva em terceira pessoa em 3D, corria o risco de cometer um erro em que, a meu ver, muitos desenvolvedores caiem: o de criar um jogo que em muito se assemelha com um filme interativo.
Aquelas cores, em Stardew Valley, são apenas o nível superficial da utopia, abrindo espaço a uma experiência positiva do jogador, mostrando-lhe que aquele é um lugar em que não encontrará adversidades, apenas felicidades, no que contrasta com os momentos que antecedem a chegada do jogador à quinta. De facto, a simplicidade com que se controlam as plantações, a abundância de recursos, e as surpresas a cada esquina vêm a mostrar que aquela localidade é só de bonanças. Aliás, mesmo em condições perigosas para a personagem, o jogo não tem problemas em recorrer ao eufemismo: ao ser atacado nas cavernas e ficar sem pontos de vida, desmaia, para ser encontrado pelo médico local, que a leva para a enfermaria local.
O que é notável é que estes aspetos funcionam exemplarmente apenas porque o jogo é em arte pixel. O controlo da vertente agrícola do jogo é profundamente simplificado pela perspetiva de topo que o jogador tem sobre a sua quinta, que lhe permite não apenas optar pela forma mais eficiente de exercer tal controlo, também lhe dá uma visão completa sobre as suas plantações, dando-lhe hipótese de chegar à satisfação com esta, podendo corrigir este ou aquele aspeto no que desejar, como pode ser a decoração. Em recursos, só o tempo é que não é infinito e que precisa de maiores cuidados na gestão. A divisão do espaço de jogo em secções como quinta, floresta e praia, por oferecer uma quebra entre espaços, abre a hipótese de que, entre um local e o outro, o jogador seja surpreendido com uma cena cinemática.
Outros elementos
Este último é um aspeto de que um jogo em 3D tentaria fugir, para evitar os irrealistas ecrãs de carregamento, o que é desde logo indicativo das diferenças que se admitem entre videojogos 2D com arte pixel e 3D preocupados em ser realistas. Enquanto nos últimos quebra o ritmo de jogo, nos primeiros permite distinguir aqueles espaços.
Esta diversidade não faz um tipo de jogo superior ao outro, pelo contrário diferenciando-os, enfatizando a unicidade de cada um. No entanto, na perspetiva da utopia, os jogos em arte pixel têm algumas vantagens, as quais assentam na sua oferta de uma jogabilidade que, em princípio, é simplificada: o campo de ação do jogador é mais reduzido, o que tem o efeito de lhe tornar o jogo mais acessível, e, assim, tem maior oportunidade de refletir sobre o enredo.
Em termos de câmara de jogo, a arte pixel favorece o uso de ângulos que, na vida real, estão vedados ao ser humano, e, nas vezes em que não estão, não é quem tem aquela perspetiva que controla os eventos, apenas os observa. Com efeito, oferece-se a possibilidade de ver a vida de novos ângulos, o que tem a principal consequência de permitir uma expansão da cosmovisão do indivíduo sobre o mundo real, e não apenas no jogo. O uso desta perspetiva pode ser aproveitado para a edificação de um cenário utópico pela inclusão de símbolos relacionados com aquilo que estabelece a utopia. Retomando o exemplo de Stardew Valley, é justamente isto que o criador faz quando coloca no ecrã do jogador Junimos, pequenas criaturas mágicas, que, misteriosamente, desaparecem quando a personagem se move na sua direção.
A significância deste elemento é clara: a utopia existe, e, graças à inclusão destes seres, ganha um caráter mágico que apenas a reforça. E este é o caso também para jogos em primeira pessoa que não em arte pixel, o que mostra que, afinal, este artifício é de uso não só em videojogos 2D, e tampouco de arte pixel. Um caso clássico é Half-Life, um dos mais conhecidos videojogos que contam uma distopia. No primeiro número, há momentos em que uma figura misteriosa aparece distante, para desaparecer quase imediatamente, o que vem a demonstrar que, na verdade, há elementos que podem servir para os dois tipos de jogos.
É verdade, portanto, que qualquer género de jogo de computador, enquanto artefacto cultural, tem em si o potencial para construir novos mundos, repletos de significado e capazes de induzir em reflexão aqueles que usufruem dele. Esta sua capacidade assenta na imitação do real, o que pode procurar fazê-lo com maior ou menor compromisso com a experiência do mundo. E é justamente nesta possibilidade de distorcer a realidade que residem as vantagens dos videojogos de arte pixel na construção de uma utopia.
O David é um tipo que procura viver uma vida diversificada ao máximo possível. Gosta de publicar no Sidequest, ler e desportos. Acha um bocado esquisito descrever-se na terceira pessoa. A sua escrita almeja olhar para os videojogos como artefactos culturais, em vez de peças de entretenimento, já que pretende ser reconhecido como um crítico de cultura. Ele adora trocar ideias com os seus leitores, e gostava de saber o que achas sobre este artigo, por isso, não hesites em contactá-lo se tiveres alguma questão, ou talvez alguma sugestão sobre o que ele poderia escrever.