Backlash, uma forte reação negativa a algo. Esta manifestação em massa da opinião dos jogadores tem sentenciado múltiplos jogos logo no seu dia de lançamento.
Mais do que nunca, temos ferramentas gratuitas e de fácil acesso para fazer chegar a nossa opinião ao mundo de forma global e imediata. Um tweet basta! O alcance da nossa voz é medido pelo número dos nossos seguidores nas redes sociais. Um retweet e os seguidores dos nossos seguidores aumentam o nosso alcance. No Metacritic, os utilizadores têm voz e ajudam a calcular uma nota de avaliação do jogo, que serve de referência importante para quem quer perceber se um jogo é bom.
Quando um jogo é lançado, em menos de 24h, já existe uma avaliação global e massiva do mesmo. Mas o que é diferenciador, hoje em dia, é que essa avaliação massiva ultrapassa os influencers da especialidade, sejam imprensa ou criadores de conteúdo. Actualmente, em menos de 24h, a internet já conhece a avaliação de todos os jogadores anónimos, os reais consumidores.
Com o lançamento da versão para a nova geração de Cyberpunk 2077, decidi finalmente por as minhas mãos neste jogo, que antecipei imenso durante anos, mas que o seu lançamento atribulado me afastou de o adquirir imediatamente. A minha experiência com o jogo da CD Projekt Red foi o catalisador para esta reflexão.
Todo o marketing de Cyberpunk 2077 até ao seu lançamento criou mais problemas que os desejados. Os jogadores ficaram entusiasmados com materiais promocionais que se revelaram não ser representativos do produto final. O jogo prometeu muito e, infelizmente, foi incapaz que entregar um produto, no seu lançamento, que cumprisse as promessas. O backlash foi terrível e o jogo perdeu a boa vontade dos fãs. Se o desapontamento global é compreensível e as críticas apontadas muitas vezes justas, a forma como a comunidade se manifestou ultrapassou largamente o que Cyberpunk 2077 merecia.
Sim, os gráficos eram problemáticos e aquém do esperado na versão para consolas, haviam bastantes bugs e crashes a jogabilidade era, por vezes, inconsistente. Mas o jogo, no geral, não era certamente merecedor de um 2.5/10 no Metacritic, que foi a nota média com que os utilizadores classificaram o jogo. Não obstante os erros graves, Cyberpunk apresentava um mundo bem construído, uma boa narrativa, com diálogos muito bem construídos e uma jogabilidade dinâmica e divertida, claramente longe do rótulo de lixo que lhe foi aplicado.
Já sabemos, muito do jogador comum, quando se sente defraudado nas expectativas, não tem uma ponderação racional (que se exige a um analista) e facilmente resvala para um discurso irado, completamente cego às virtudes do objecto da sua frustração. Tal como dois cães a ladrar ferozmente de cada lado do portão (até este se abrir e frente-a-frente ficarem mansos como cordeiros), quando protegidos do confronto real frente a frente, o ser humano tende a esquecer-se da consideração e bom senso. Por detrás do ecrã do computador ou do telemóvel, perde-se a racionalidade e ganha-se toxicidade, ultrapassando o backlash as fronteiras do que seria justo.
O backlash tornou o lançamento tão desastroso que a Sony chegou ao ponto de retirar a versão para Playstation da sua loja e oferecer reembolsos totais para jogadores insatisfeitos. A CD Projekt Red retractou-se perante os jogadores, emitindo um pedido de desculpas e complementando a oferta de reembolsos.
O impacto do backlash pode ser desastroso para os estúdios.
A Bioware, muito amada pelos fans de RPGs, após o falhanço de Anthem e já antecedido pelas críticas a Mass Effect: Andromeda, esteve, segundo rumores, ameaçada de fechar portas, o que seria uma grande perda para o mundo dos videojogos, pois é o estúdio criador de sagas de sucesso como Baldur’s Gate, Knights of de Old Republic, Dragon Age ou Mass Effect.
O backlash sobre The Last of Us 2 foi tão tóxico que resultou em ameaças de morte ao director criativo do projecto, Neil Drukmann, e perseguições nas redes sociais a Laura Bailey, pelo papel desempenhado pela personagem Abby e o seu papel na história. Drukmann, apesar de não descartar inteiramente um novo jogo da franquia, prefere apontar armas a um novo IP, descrevendo estes acontecimentos como “os piores dias da (sua) vida”. E assim podemos ver-nos privados de uma sequela futura a uma das franquias mais marcantes de sempre para a Playstation.
Felizmente, a CD Projekt Red teve estrutura para aguentar a queda e Cyberpunk 2077 acabou por vender mais de 18 milhões de cópias. Um palavra forte de apreço para o estúdio, pois nunca desistiu do jogo e patch após patch, lutou para que Cyberpunk 2077 cumprisse a sua promessa. Após os primeiros patches lançados, já pouco se via dos problemas iniciais, tal como testemunhou o Alexandre nesta sua análise, na altura. Hoje, quando escrevo estas linhas e estou muito perto de concluir o jogo, posso dizer que estou a ter uma experiência fenomenal, sem qualquer bug em dezenas de horas de jogo. É um dos jogos que mais gostei nos últimos anos, extraordinário e definidor de um género. Contudo, muito dificilmente se livrará da imagem manchada e alguma vez terá o reconhecimento que merece.
E existe ainda a questão do backlash premeditadamente mal-intencionado. Recentemente, após a CD Projekt Red anunciar o seu apoio à Ucrânia, no conflito actual, o jogo foi alvo de ataques de críticas negativas de represália por parte de jogadores pró-russos, baixando drasticamente a nota do Metacritic, a qual já tinha merecidamente e a grande esforço recuperado do lançamento e alcançado um respeitável 86. Mesmo relativamente a outro exemplo já aqui referido, parte do backlash que The Last of Us 2 recebeu derivou das preferências sexuais de alguns personagens, reflectindo o lado tóxico de alguns jogadores que se acham no direito de ter as suas opções pessoais reflectidas nos videojogos em exclusivo, dando voz depois à sua opinião homofóbica, racista ou sexista. Este tipo de ataques contribui para baixar a classificação do jogo, por motivos que nada têm a ver com a qualidade do mesmo.
Sou profundo adepto desta capacidade actual da voz do consumidor ter um impacto imediato e relevante. Tem sido uma ferramenta importantíssima na luta contra práticas questionáveis e abusivas, como a monetização em videojogos, levando, por exemplo, a gigante Electronic Arts a ter de responder perante tribunais por suspeitas de manipulação de jogo no FIFA ou a chamar a atenção de entidades governamentais para regular a questão das loot boxes. Vários jogos, como o referido Cyberpunk 2077 ou No Man’s Sky, foram significativamente melhorados após o lançamento, escutando o feedback dos jogadores e procurando ir ao seu encontro.
Mais do que nunca, as empresas não podem cometer erros. Os jogadores castigam rapidamente cada erro. Isto coloca pressão para que os jogos sejam cada vez mais limpos de falhas, o que é bastante positivo. Mais ainda quando era cada vez mais comum, na industria dos videojogos, apressar lançamentos e lançar produtos inacabados, de forma a cumprir objectivos comerciais ou timings pouco flexíveis.
Mas “com grande poder, vem grande responsibilidade”. O backlash não pode ser tóxico e irracional. Tem de servir o propósito construtivo de melhorar os videojogos que tanto amamos e não de fomentar o ódio sobre os mesmos. Relativamente a Cyberpunk 2077, para mim fica a extraordinária experiência de jogo que tive, mas a mágoa de ver a imagem do jogo manchada por um lançamento atribulado. Fico a questionar-me quantos jogadores que iriam adorar embrenhar-se em Night City e viver a história de “V” nunca o irão fazer por todo o negativismo que o jogo recebeu.
Começou a jogar ainda os jogos se carregavam a partir de uma cassete de fita magnética. Completamente viciado em FIFA, é também fã incondicional de RPGs e Jogos de Estratégia. Junta, aos videojogos, a paixão pelos jogos de tabuleiro.