This War of Mine: Final Cut – a definitiva sobrevivência à guerra | Análise

This War of Mine: Final Cut relança o jogo original, com vários melhoramentos e completo com os vários DLC, numa altura em que a sua mensagem é novamente urgente e relevante.

Em 2014, a 11 Bit Studios lançou This War of Mine, um jogo diferenciador, que nos impele a sentir a guerra de uma forma totalmente diferente do que estamos habituados num videojogo. Aqui, não somos o soldado que atravessa o campo de batalha deixando um rasto de inimigos derrotados ou um general que define as estratégias em busca da vitória. Não há glória a conquistar. A guerra não é vista como entretenimento. Somos os civis que tentam sobreviver, quando tudo vai sendo destruído à sua volta, quando comida, medicamentos e recursos escasseiam, quando a qualquer momento uma bala nos pode roubar a vida e a nossa saúde mental é ferida todos os dias.

O jogo passa-se em Pogoren, uma cidade fictícia, centro de uma guerra entre rebeldes e o exército do país, tendo sido inspirado pelo Cerco de Sarajevo durante a Guerra da Bósnia de 1992 até 1996. Ao jogarmos agora This War of Mine: Final Cut, pensamos em Mariupol e na guerra na Ucrânia, com a grande cobertura mediática a trazer-nos imagens e informação diárias do que se passa na Ucrânia, fazendo-nos sentir, talvez como nunca antes, o desespero da população civil e este jogo parecendo mais actual que nunca.

E a 11 Bit Studios, que fica na Polónia, perto da fronteira com a Ucrânia, além de perceber o poder da plataforma dos videojogos para nos passar uma mensagem importante, não faz da sua voz oca, tomando também acção e tendo doado à Cruz Vermelha Ucraniana todos os lucros da venda de This War of Mine, uma doação que totalizou cerca de 850 mil dólares. Aliás, um ano após o lançamento do jogo original, já se tinha associado com o War Child para angariar quase 500 mil dólares para suportar esforços anti-guerra pelo mundo.

Parece-me importante este contexto e perdoem-me alongar-me um pouco nele. Como jogadores, muitas vezes, é-nos tão estimulante como relaxante sentar com o comando na mão a matar “inimigos” em massa, com um arsenal ao nosso dispor de fazer inveja a John Rambo. Não queremos vestir o papel do civil que sofre no meio da guerra, sentir a sua angústia e desespero de sobrevivência. Não nos queremos expor a estímulos de depressivos. Da mesma forma, temos filmes que transformam a guerra em entretenimento leve, como Pearl Harbour. E depois temos obras primas do cinema que nos fazem sentir, de forma visceral, o quão dramática realmente é para as pessoas, como O Pianista, A Lista de Schindler ou o Túmulo dos Pirilampos. This War of Mine é uma obra que está para os videojogos como estes últimos filmes que referi estão para o cinema. Não nos sentimos felizes pela nossa exposição, mas a nossa humanidade sai reforçada.

Em This War of Mine: Final Cut, começamos o jogo controlando um grupo de sobreviventes, que se abriga num edifício abandonado e semi-destruído, procurando chegar ao fim do conflito vivos. Cada novo jogo que começarmos, o grupo de sobreviventes é escolhido de forma aleatória, bem como a casa em que nos abrigamos ou o número de dias que o próprio conflito dura. No meu playthrough, calhou-me um pai e filha, o que se provou um desafio enorme até mais alguém me bater à porta a pedir para ser acolhido. Uma criança pouco contribui e é muito exigente do ponto de vista emocional.

O nosso abrigo tem muitos materiais abandonados que podemos recolher para criar os primeiros equipamentos de suporte. Vamos precisar de um fogão, para cozinhar, bancadas de trabalho para construir mais e novos equipamentos, lockpicks ou pás para nos ajudar nas incursões em busca de comida, medicamentos e materiais. E claro, vamos precisar de fazer armas para nos defendermos. Não, não nos vamos defender do exército, mas em tempos de guerra o caos e o desespero leva a medidas dramáticas e teremos de proteger os nossos bens de outras pessoas que os tentam roubar. Ou podemos, nós próprios, enveredar por caminhos de violência na busca por preciosos e escassos recursos.

O jogo repete-se em ciclos dia/noite. Durante o dia, temos de fazer as tarefas do abrigo, produzir equipamentos e suprir as necessidades de alimentação, médicas ou repouso dos nossos sobreviventes. Recebemos ainda visitas, por vezes vizinhos oferecendo ou pedindo ajuda, outras vezes pessoas a tentar fazer trocas (benditos cigarros, álcool ou café que encontramos/produzimos e podemos converter em comida, água ou aqueles pedaços de madeira que tanta falta nos fazem). Ocasionalmente, podemos receber alguma pessoa a pedir para se abrigar connosco, passando a ser um sobrevivente por nós controlado.

Durante a noite, definimos que sobreviventes dormem, ficam de guarda ou fazem incursões por alguma das várias localizações da cidade, em busca de mantimentos ou materiais essenciais à nossa sobrevivência. Nunca sabemos quando ladrões tentarão entrar em nossa casa, roubando-nos bens essenciais e deixando os nossos sobreviventes feridos, pelo que não deixar ninguém de guarda é sempre um grande risco. Por outro lado, sendo os recursos tão finitos, é rara a noite que não precisamos de fazer alguma incursão. Dei por mim a ter, noite após noite, apenas a criança a dormir, com os adultos dividindo-se entre guardar a casa e sair em incursão. Claro que, depois, durante o dia, precisam de aterrar umas horinhas na cama.

This War of Mine: Final Cut é um jogo de sobrevivência. Desde as necessidades inesperadas à nossa capacidade muito limitada de conseguir o que precisamos, está tudo lá e muito bem feito, com imensas variáveis para gerir. E o jogo é bastante penalizador. Não apenas os nossos recursos são limitados, como o nosso espaço em mochila, quando fazemos incursões, apenas permite um inventário muito limitado. Precisando nós de tantos recursos, teremos constantemente de fazer escolhas sobre o que realmente precisamos de trazer para casa.

Cada incursão nocturna vive de uma extrema tensão e é esta mesma que torna a jogabilidade tão cativante. Tão depressa podemos estar a vasculhar em edifícios abandonados, como, de repente, nos podemos ver a entrar numa zona hostil, que temos de navegar sem ser vistos ou fazer ruído, evitando ser atacados, enquanto recolhemos preciosos recursos ou mantimentos. Isto tudo, com o tempo a passar, sabendo que temos de sair antes do amanhecer, sob o risco de não conseguir regressar a casa. Tematicamente, todos estes momentos de tensão servem o reforço da dificuldade que uma pessoa comum teria na sobrevivência a uma guerra.

Apenas o combate, quanto a mim, fica um pouco aquém do que poderia ser. Os nossos sobreviventes estão longe de ser especialistas no mesmo, pelo que desafiar um soldado armado por umas latas de comida é algo, naturalmente a evitar, pois o desfecho mais provável é a nossa morte. Contudo, mesmo assim, se confrontados com a necessidade de combater, o mesmo é um pouco atabalhoado e em fracções de segundo pode ter terminado. Na verdade, nada que manche o jogo ou acabe por fugir muito à realidade, mas, como jogador, gostaria de sentir um melhor controlo sobre o nosso personagem.

Não existe uma história central por detrás de This War of Mine: Final Cut. Apenas que estamos no meio de uma guerra. Mas as narrativas multiplicam-se de forma brilhante durante o jogo. As histórias constroem-se através dos encontros que os nossos sobreviventes vão tendo.

Cada pessoa que encontramos nas nossas incursões ou recebemos à nossa porta está a lidar com as feridas da guerra na sua forma particular. E, na pele dos nossos personagens, seremos confrontados com escolhas, por vezes complexas, sobretudo no campo da moralidade. Precisamos mesmo de alguns mantimentos e as localizações mais seguras já foram totalmente pilhadas. Vamos arriscar-nos a infiltrar num edifício controlado por um gang armado ou vamos assaltar a casa de um casal de velhotes, incapazes de se defender? E os nossos personagens reagem emocionalmente, conforme. Se roubarmos aos velhotes, o sobrevivente que o fez vai ficar triste, talvez até depressivo, questionando as suas acções e sentindo-se culpado por os deixar sem meios de sobreviver. Por outro lado, se o nosso pai ficar gravemente ferido com uma bala do gang armado, pode morrer. Adicionalmente, a sua filha vai ficar depressiva e desesperada.

No rádio, o desenvolvimento da guerra constrói-se através das notícias que vamos ouvindo, que nos dão também algumas dicas alguns mecanismos de jogo que temos de nos preocupar, como a necessidade de aquecer a casa para proteger do frio que se aproxima ou a onda de assaltos nocturnos realizados por gangs armados.

Visualmente, o jogo é fantástico. Apesar do estilo estilizado, como se desenhado com lápis, todos os pormenores são surpreendentemente detalhados. Apesar de ser um side-scroller e a acção se desenrolar num plano 2D, todos os ambientes estão (muito bem) modelados tridimensionalmente, dando um dimensão física a ambientes meticulosamente desenhados e exímios em nos expor aos horrores da guerra. O 4k da nova geração ajuda a todos os pormenores estarem perfeitos.

O audio do jogo é fenomenal. Há muito tempo que não jogava um jogo cujo som desempenhasse um papel tão importante no ambiente do mesmo. Durante o dia, as bombas a explodir à distância relembram-nos constantemente da ameaça, mesmo enquanto o rádio toca música ou um sobrevivente toca guitarra para tentar levantar os ânimos. Durante a noite, tiros disparados muito perto de nós roubam-nos qualquer ideia de conforto, ao mesmo tempo que qualquer ruído que provocamos a abrir uma porta ou vasculhar um pilha de destroços nos deixa tensos e receosos de chamar atenção sobre nós. Mas onde o audio brilhou para mim, foi com a presença de uma criança na minha casa. Quando ela estava contente a brincar, o som de risos enchia a casa. Mas quando ela estava deprimida e com medo, várias vezes o choro enchia o ambiente e, como jogador, não conseguia ficar indiferente.

As interações entre adultos e crianças são, aliás, dos momentos emocionais mais notáveis em This War of Mine. Adultos jogam jogos com a criança para a tentar animar, criando ligações afectivas. São ainda despoletados vários diálogos sobre tópicos difíceis, em que um adulto tenta serenar a criança sobre o que está a acontecer ou tenta responder a perguntas desconfortáveis da mesma sobre questões da guerra.

Quanto ao interface, é fácil e intuitivo. Contudo, durante a fase de dia, no nosso abrigo, pode tornar-se um desafio seleccionar a acção que pretendemos, quando próxima com outras e se quisermos ser rápidos na execução.

Este Final Cut, além de todos os melhoramentos gráficos, conta com o This War of Mine: Stories, que são os três DLC lançados até hoje. Estas expansões oferecem, em troca de algum controlo sobre certos aspectos da jogabilidade, uma experiência enriquecida com histórias mais densas. Nestes cenários pré-escritos, jogamos focados num grupo específico de sobreviventes, com narrativas mais complexas e alguns finais diferentes. Apesar de ser uma jogabilidade mais linear que no modo principal, as mensagens sobre as duras realidades da guerra são também mais poderosas.

 

Conclusão:

This War of Mine continua relevante nos dias de hoje  e este Final Cut faz todo o sentido. Para quem nunca jogou, esta é a oportunidade certa. Para quem já jogou, é um convite a um novo playthrough, numa experiência de jogo melhorada (o factor de re-jogabilidade é bastante elevado). Neste jogo não nos vamos sentir felizes, muitas vezes podemos mesmo sentir-nos frustrados. Mas é um grande jogo de sobrevivência, capaz de nos por na pele de quem se vê apanhado por uma guerra e todo o seu mundo colapsa. Não é por acaso que este é o primeiro jogo na história a ser adicionado oficialmente ao currículo escolar.  Na Polónia, este jogo foi adicionado à lista oficial de leitura das suas escolas, estando disponível gratuitamente para alunos de Sociologia, Ética, Filosofia e História. E por bom motivo. É um grande jogo!