Tenho um problema com Baldur’s Gate 3

O meu problema com o Baldur’s Gate 3 é real e está na hora de o assumir.

Nunca cheguei a escrever uma análise sobre Baldur’s Gate 3. Primeiro, porque esperei pela sua chegada às consolas e, por essa altura, senti que o combóio das análises já tinha partido. Achei mais relevante, na altura, analisar as razões do sucesso estrondoso que o jogo teve.

Depois, após ter completado o meu primeiro playthrough, senti que já não fazia sentido falar sobre o assunto. O conteúdo criado por toda a internet era já overwhelming e os prémios conquistados  falavam por si. Para os mais distraídos, tenho de referir que BG3 veio a tornar-se no primeiro jogo da história a ganhar jogo do ano em todas as principais cerimónias de prémios.

Mas agora preciso de falar. Preciso de assumir um problema: não consigo largar o Baldur’s Gate 3! E preciso de falar sobre isso. Neste momento vou no terceiro… e quarto playthrough. Sim, tenho dois jogos diferentes a decorrer ao mesmo tempo. Vou no terceiro playthrough com a minha mulher (obrigado Larian Studios por continuares a desenvolver jogos que permitem coop local) e, simultaneamente, cada um de nós está a experimentar um playthrough sozinhos. Estamos a fazer isto e já falamos, entre nós, que personagem queremos construir e variantes da história experimentar quando acabarmos os jogos actuais. São, ao dia que escrevo estas palavras, mais de 360h de jogo. E este é um número que até me parece pequeno quando comparado com muitos fãs do jogo, mas que é bem significativo para o nosso estilo de vida e disponibilidade para a consola.

Como se tudo isto não bastasse, a banda sonora, um fantástico trabalho de Borislav Slavov, corre em repeat aqui em casa. Ao ponto de dar pelos meus filhos (5 e 2 anos de idade) a cantarolar a Nightsong no banco de trás do carro, quando os vou levar à creche.

Nunca fui um jogador de me aventurar novamente num jogo depois de o acabar.  Agora, não estou a conseguir encerrar este capítulo. E racionalizando os motivos, encontro talvez algumas das maiores virtudes de Baldur’s Gate 3, que o tornaram no fenómeno do ano dos videojogos. E vão muito além da jogabilidade em si, que é extraordinária.

Nem todos gostam de um combate tático por turnos e, muito embora Baldur’s Gate 3 tenha conquistado muitos jogadores não apreciadores do género, percebo quem não consiga encaixar. Tenho, aliás, um amigo que comprou o jogo e não conseguiu ir além do primeiro par de horas. Tenho para mim que tivesse ele ultrapassado essa barreira e jogado mais umas poucas e teria ficado agarrado. Mas isso é outra conversa.

Eu adoro jogos com combate por turnos. Sou aficionado por jogos de tabuleiro e por Tabletop RPGs e sinto-me preenchido por esses mecanismos. Baldur’s Gate 3 usa precisamente os mecanismos de Dungeons & Dragons (o maior e mais conhecido RPG) e adapta-os na perfeição a um videojogo moderno. E se há coisa que adoro nos Tabletop RPGs é a total liberdade para interagir com o mundo, encontrando soluções criativas e inesperadas para resolver encontros. E isso leva-me ao primeiro motivo que me leva a não conseguir largar este jogo:

LIBERDADE TOTAL, CONSEQUÊNCIAS SIGNIFICANTES

Penso que nenhum RPG até hoje nos oferece o grau de liberdade que Baldur’s Gate 3 oferece. Podemos interagir com o mundo e os seus personagens de “mil” formas possíveis e cada uma irá gerar consequências diferentes. As opções ultrapassam largamente o simples aliar com a facção “boa” ou a facção “má”. A forma como falamos com os restantes e as escolhas que tomamos não são inconsequentes como na maioria dos jogos. Aqui realmente importam e sentiremos o seu impacto mais para a frente.

Um simples diálogo, aparentemente inconsequente, com um trio de personagens que não parecem importantes e que discutem se devem ficar com um grupo maior ou ir embora, define se esse mesmo grupo consegue sobreviver mais para a frente na história. Mas esse mesmo grupo pode nem chegar a esse ponto da história, se tomarmos certas opções. E isto multiplica-se por um sem número de encontros que temos ao longo do jogo.

Podemos escolher ignorar ou até matar um personagem chave (e companheiro recrutável), portador do artefacto sem o qual a história não faz sentido. A Larian permite-nos isso e encontrou soluções para o jogo continuar. Tal como um bom mestre de jogo, em Dungeons&Dragons, quando confrontado com os jogadores a tomarem as opções mais imprevistas na história que escreveu, soube como fazer o seu jogo reagir e adaptar-se à liberdade que ofereceu.

Nenhum outro jogo atingiu este grau de agência do jogador.

Swen Vincke, CEO da Larian e o lead writer Adam Smith alegaram antes ainda do lançamento do jogo que existem 17.000 finais diferentes para Baldur’s Gate 3. Claro que não estamos a falar de finais drasticamente distintos. A narrativa principal tem um número mais limitado de desfechos. Contudo, as variações mais subtis, derivadas das várias combinações de todas as opções tomadas poderão atingir esse número. É fácil acreditar que sim. E não estamos só a falar se personagem X acaba o jogo com o cabelo preto ou louro (wink wink). Muitas variações são significativas e importantes, encerrando arcos de histórias interessantes e complexas.

E esta liberdade criativa não se limita à história. Estende-se também à jogabilidade. Chegar a um local onde imagino que irei ter hostilidades mais tarde e espalhar alguns barris de pólvora em locais estratégicos para explodir os inimigos com uma seta de fogo mais tarde se necessário, pode ser uma solução para tornar um combate muito complicado num passeio no parque. Transformar-nos numa nuvem de gás com um feitiço para passar num pequeno buraco e infiltrar uma torre cheia de inimigos ou aceder à mesma porque enganamos os guardas podem ser alternativas a entrar pela porta principal a rodar o braço. Ou antes de fazer um feitiço de electricidade, fazer um feitiço de criar água para deixar os inimigos molhados e mais vulneráveis ao dano eléctrico. São apenas alguns exemplos de interações e soluções que podemos encontrar. Ainda hoje exploro ideias novas para resolver alguns encontros.

E toda esta liberdade e variedade alimentam a minha vontade de continuar a explorar e descobrir coisas novas em Baldur’s Gate 3. E o factor novidade continua a aparecer-me, mesmo após todos os playthroughs já feitos. E quero muito continuar a explorar variantes da história, o que me leva ao outro ponto:

NARRATIVA E UNS COMPANHEIROS QUE NÃO QUEREMOS ABANDONAR

O trabalho de escrita em Baldur’s Gate 3 é extraordinário. A história principal é boa, mas, a bem da verdade, nem é por aí que o jogo mais brilha. Todas as narrativas paralelas são excelentes, com particular ênfase nas histórias dos nossos companheiros.

Existem, não havendo ainda algo que não tenha descoberto nesse campo, 10 personagens que podemos recrutar como companheiros no jogo. Desses, 6 são denominados de origin characters, com uma história mais desenvolvida e com os quais podemos iniciar o jogo, em vez de criar um personagem customizado. Os restantes 4 têm histórias muito interessantes e ricas, mas o trabalho de escrita em torno dos origin é algo que ainda nunca tinha experienciado. Fiquei colado ao sofá boquiaberto com alguns momentos climáticos do arco desses personagens. E a forma como esses arcos são resolvidos varia também conforme as tuas opções e o relacionamento que desenvolveste com cada um dos teus companheiros.

É difícil para mim desenvolver este ponto, não querendo entrar em spoilers. Já vivi muitos momentos intensos de história em videojogos, mas que me deixassem em tensão, a olhar para opções de texto num momento climático, sem saber o que escolher, para depois ver desenrolar as consequências perante os meus olhos… e estar bom… muito bom… mesmo quando não era a consequência que eu pretendia. Há vários momentos assim neste jogo.

E depois há outro lado e que deriva, uma vez mais, da forma fantástica como a Larian faz todo o mundo reagir ao jogador. E isto não senti com mais nenhum jogo. Os nossos companheiros reagem a tudo o que fazemos. E não apenas isso, reagem a tudo o que acontece aos nossos outros companheiros. Têm personalidade e ideias próprias. As interações no acampamento são importantes e interessantes. Os relacionamentos desenvolvem-se. Os companheiros vão mudando com o evoluir da história. Criam-se cumplicidades e desenvolvem-se relações (sejam amorosas ou de amizade). E depois, com aquela magia da Larian, estes companheiros parecem vivos. Quase nos esquecemos que são “apenas” personagens de um videojogo, tal a sua complexidade e forma como reagem connosco. E a riqueza e humanismo das suas histórias pessoais levam-nos a criar uma grande empatia com eles e a identificar-nos com algumas das suas lutas internas. E aqui tenho de aplaudir também o excelente trabalho de voice acting dos actores por trás de cada um dos nossos companheiros. Não é à toa que Neil Newbon, que interpretou Astarion, ganhou múltiplos prémios.

Sinto que ainda tenho tanto por explorar nas suas histórias. Quero conhecer os vários desfechos, conhecer todas as variantes. E depois não é só isso…

É frequente aparecerem comentários nos fóruns da comunidade de pessoas que vivem obsecadas com determinado personagem ou com grande dificuldade em abandonar o jogo por causa dos companheiros, pelo vazio que lhes deixa. É fácil perceber porquê. No dia que deixar de jogar Baldur’s Gate 3, sei que vou ter de fazer um luto por aqueles companheiros. Têm feito tão parte de mim nos últimos meses, criando uma empatia tão grande, que vou sentir muitas saudades da Karlach, Astarion, Shadowheart, Gale, Lae’zel e Will.